Outras
Graças
Graça Nascimento
(ORELHA DO LIVRO)
Eu já estava na expectativa de receber os
originais deste livro.
Graça havia dito que gostaria que eu
tomasse conhecimento do mesmo. Acredito ser questão de confiança e estima, uma
vez que não seria eu (apenas um leitor) a pessoa indicada pra fazer uma análise
de Outras Graças. Termina sendo um compromisso mesmo que não queira.
O fato é que essas palavras vão acompanhar
o livro e eu embarco neste caminhão de poemas e phallós febricitante. A minha
opinião neste livro faz parte de outras Solicitadas por Graça pelos seus amigos
para compô-lo.
Ainda aquecido com a leitura de Outras
Graças, onde encontrei uma Graça mais amarga, mais frágil, mais defesa, mas
sempre no alcance da imunização de forma característica e combativa. Corajosa
Graça escreve como age. Isso pelo menos lhe tira do encargo de pôr várias
máscaras todas as manhãs para enfrentar os dias.
Esse livro é uma “Assembleia Geral” dos EUS
que se multiplicam e que formam a Graça como um todo. “Elas” andam juntas, de
braços com Reich e acenando para Freud.
Confesso que apesar da relação poesia-prosa
contida neste livro, eu sou mais a Graça Prosa. A justificativa talvez esteja
dentro da minha expectativa com relação ao seu primeiro livro, que poderia muito
bem chamar-se de NEM TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA.
OUTRAS GRAÇAS tem na realidade algumas
“chaves” mas tem uma que o título é de rara felicidade, um presente iluminado
enviado pelos astros com toda energia cósmica. Trata-se de MÃES ASSASSINAS DO SOL.
O texto quase não paga o título se não fora a Graça menina, pura, descobrindo o
sexo sob os olhares dos pecadores.
Antes os atos simples, instintivos,
plenamente naturais da inocente Gracinha tivessem sido andando sobre as águas
salgadas dos oceanos. Mas esse poder, esse privilégio, essa outra Graça divina
só pertence a Iemanjá, que poderia muito bem levar a Graça Nascimento até bem
perto do Sol, para que ela pudesse consumar o seu intento.
Ésio Rafael
Outras Graças
Graça Nascimento
Nos anos
90, esse livro, exceto algumas partes que surgiram depois, foi submetido ao
conselho editorial da UFAL (Universidade Federal de Alagoas), por cuja editora
deveria ser lançado. Infelizmente ocorreu a morte prematura do amigo Alberto
Antunes que ocupava então o cargo de vice-reitor daquela instituição e que era
a pessoa que incentivava, encaminhava e pretendia realizar um lançamento por
aquelas vias.
Não me interessei em prosseguir com o projeto... sempre
achei que minha obra combinava mais com a “produção independente”.
Hoje, quando considero que é tempo de “Outras Graças”
nascerem, lanço-me independente, livre e Solta.
Confesso que enterneceu-me como “escritora” e poetisa o
parecer daquele Conselho, nas palavras do então conselheiro, Francisco Antônio
de Andrade Filho. Pessoa que nunca vi, mas que tocou-me profundamente e
inspirou-me grande admiração pela inteligência e visão ampla sobre a vida que
demonstrou no seu escrito.
Por isso suas palavras compõe e abrem esse livro...
***
UNIVERSIDADE
FEDERAL DE ALAGOAS
EDITORA DA UFAL/CONSELHO EDITORIAL
NASCIMENTO, Graça. OUTRAS GRAÇAS
PARECER DO CONSELHEIRO FRANCISCO ANTÔNIO DE ANDRADE
FILHO.
Este livro “Outras Graças”, em prosa e versos, de Graça
Nascimento, esclarece suficientemente porque é que existe uma razão moderna
para se romper com a dominação de se pensar por outrem, ser naturalmente livre
e, numa irrupção no novo e no tempo, criar a possibilidade da liberdade humana.
A autora escreve em prosa e versos modernos. Produz Outras graças, questionando a razão e os saberes estabelecidos
pelas ciências. Não teme a liberdade natural, degenerada, corrompida e diluída
pela sociedade política, econômica e religiosa.
É ainda tempo de modernidade. De construir uma escrita
nova, pois “Não quero escrever coisas
medíocres”, defende-se Graça Nascimento. Ela deseja edificar uma nova
postura de mundo, escrever com o corpo e alma, celebrar uma festa psicossomática,
expressar-se livremente.
É na força moderna da escritora, de não renunciar a
liberdade, de não destituir-se dessa qualidade natural do homem e mulher.
Romântico e ricamente expressas numa relação contra a moral moderna -, moral
essa de contradição civilizada e hipócrita - , renascem assim as letras de
Graça. E as critica com a caneta do principio moderno de sua liberdade.
Escreve: “Suas formas de ser livre me
soam como receitas de mesinhas das avós, que acalentam mas não curam, aparentam
mas não são (...) quero a liberdade e
quero chorar lágrimas ácidas sobre algemas que me aprisionam, até senti-las dissolvidas
diante de meus olhos lacrimejantes de êxtase livre”.
São lágrimas de felicidade do novo ao quebrar a cansativa
estrutura do velho mundo. É a consciência da liberdade de pensamento, de sua
capacidade de conhecer e transformar a natureza e a sociedade. De a mulher
mudar suas condições de vida e situar-se de modo diferente e, por isso, na
harmonia com o outro, constituir novas relações sociais.
Ainda neste enfoque filosófico, a autora faz um chamado a
natureza, fonte de sua contribuição original e numa forma literária para os
nossos tempos. Ela parece pensar a liberdade natural diluída e degenerada pelo
sistema de normas, regras, leis e valores definidos explicitamente pelos
poderes políticos, econômicos e eclesiásticos, perversidades essas da atual
sociedade humana.
Interprete da natureza, Graça Nascimento, nesta obra, faz
e entende tanto quanto constata pelo trabalho da mente gravado no livro. É
assim que num estilo atraente, em prosa e versos, trava uma relação com a
natureza, com o Sol, a Terra, corpo, inteligência, com todo o universo à luz da
sua razão. É a escrita pensando como o filósofo Platão pensou em seus Diálogos.
O filósofo grego via com os olhos da razão a totalidade do real ou do Cosmos
como a Graça vê em “Mães assassinas do Sol”,
como ela mesma afirma, “num fitar de
olhos e viajava em mim mesma e no Sol...”. Ela deixa a Filosofia falar e
escrever como René Descartes em seus Princípios
de Filosofia (1644), “donde se pode
deduzir as razões de tudo o que se é capaz de saber”, deste “olho pelo qual a nossa contemplação (...),
de tal excelência que todo aquele que se resignasse à sua perda privar-se-ia de
todas as obras da natureza, cuja vista faz a alma feliz na prisão do corpo,
graças aos olhos que lhe representam a infinita variedade da criação”.
A autora de Outras
Graças faz também um elogio à natureza e canta um verdadeiro hino de louvor
aos olhos, quando afirma:
“Quis olhar o Sol
para só assim emocionar-me. O comum, o concreto, o palpável, o desejo, a
paixão... Busquei olhos no Sol... É a emoção de um olhar sem olhos que me falta
para que eu seja feliz. Para que eu seja realmente humana e goze na vida o
paraíso da plenitude”.
É dessa sensação visual da realidade, tal qual a Graça e,
cada ser humano experimenta individualmente, para “guiar-se por si próprio” e
“gozar da beleza das cores e da luz”, é dessa imagem ótica do espírito e do
corpo, que se domina, dirige, critica a cidade, apreende o real. Vive livre na
comunicação falada e escrita; limitando-se a leitura do Livro do Mundo e do
estudo de si próprio para conhecer o outro. É nessa atitude que a autora grita.
Insiste. Fala e escreve no “Eu e a
justiça” sobre a mulher cega em cima de um prédio enorme, em posição ereta
e fria, que reina naquele Castelo. Aqui, a escritora presta homenagem à
Palavra, à Filosofia. Desta vez, reporta a Denis Diderot que, em 1749 escreve a
“Carta sobre os cegos para o uso dos que veem”.
O filósofo iluminista reproduz nesta carta a Dióptrica de Descartes cheia de “figuras de homens ocupados em ver com
bengalas”.
Pois bem, hoje, nesta obra, a Graça vê a justiça cega.
Cega, vê. É a justiça cega, com olhos abertos, mas não enxerga. Tem olhos para
ver os palácios da Alvorada, dos Ministérios, do Congresso Nacional, do Senado,
da Catedral. Justiça cega não conhece o mundo. Não pensa. Não filosofa.
Não conhece sentimentos, nem cegos, nem mendigos.
(Des)conhece artistas, escritores e filósofos. Garante apenas o próprio poder,
seus papeis, suas leis, seus mandatos. A mulher cega censura os filósofos.
Destrói o ethos do Estado. Bloqueia o
livro dos pensadores, financia a publicação dos discursos dos políticos e os
sermões dos Bispos e do Papa. Mas coloca as obras dos escritores e dos poetas
no “Index proibitorum”. Filósofos e
escritores e poetas veem a justiça cega. Veem cegos. Cegos, veem.
É pois neste quadro filosófico, nesses e noutros aspectos
de Outras Graças, que a autora se
coloca. Salvo melhor juízo dos nobres companheiros deste Conselho Editorial da
UFAL, Graça Nascimento destaca-se bastante entre os pensadores de nossos dias,
marcando ao mesmo tempo, de maneira precisa, o sentimento mesmo de sua atividade
de escritora. Aqui o leitor encontrará não apenas versos e prosas, mas o
conceito de Filosofia se constituindo como forma literária tecendo-se em
modernas reflexões de valorização de sua capacidade racional para apreender a
realidade objetiva em todas as dimensões, em sua totalidade.
Por isso, pela importância filosófica de seu trabalho, de
estilo simples e de rico conteúdo, recomendo com louvor a publicação desta
obra. Nela, o público irá aplaudir a liberdade de pensar a sociedade de hoje e
a paixão de escrever bem, se preocupar com o problema da liberdade humana.
Nela, o leitor sentir-se-á feliz na descoberta de sua capacidade de se servir
do entendimento sem orientação de outrem, de usar de sua inteligência para
tornar realidade a utopia de sua emancipação e de toda Humanidade.
Maceió, 24 de Maio de 1995
Francisco
Antônio de Andrade Filho
(membro
do Conselho Editorial)
Comentário
da autora
Mais uma
vez ouso chegar até as pessoas através de um livro. Treze anos depois da Nudez da poesia, sinto-me outra vez
suficientemente corajosa, para enfrentar nua um mundo onde todos se escondem
com roupas, máscaras ou mais.
Já faz tempo que o conteúdo deste livro está sendo
preparado. Todos os dias eu crio, mesmo quando não transcrevo para o papel, os livros
se sucedem na minha cabeça e esperam apenas o momento de serem expelidos para a
apreciação de um mundo externo, no qual o primeiro e surpreendido leitor sou eu
mesma.
Esse livro começou a nascer no dia seguinte à emancipação
do outro; sim, porque no tempo de gestação dos meus livros, pertencem apenas a
mim todas as emoções, que depois se concretizam através das letras e só no
momento em que entrego-as ao mundo é que sinto-as Soltas de mim mesma, livres
da minha própria escravidão.
Vocês, meus leitores, recebem escravos recém-alforriados,
tratem-nos como seres realmente livres; não vão escravizar com suas doenças
aquilo que com muita luta consegui livrar da minha. Sejamos complacentes e um
pouco mais humanos.
Continuo tentando desnudar-me, quer em versos ou em prosa
e graças, a graça que recebi de graça, cada dia sinto-me mais nua e próxima do
orgasmo que tanto busco e que preciso dividir com a humanidade para que
cumpra-se em mim a vida.
Quando organizei o meu primeiro livro, estava totalmente
tomada pelo encanto poético de São José do Egito. O sertão do Pajeú
identificou-se comigo de tal forma que chegamos a nos misturar. Hoje, treze
anos depois, começo a organizar o segundo, morando e sendo tomada pela magia de
Canhotinho.
Só que entre São José do Egito e Canhotinho passou por
mim nesses treze anos a energia do Recife. O Recife tão fundamentalmente
importante na minha vida quanto a própria essência dela mesma. Ali eu transei
pela primeira vez, ali eu pari os meus dois filhos, eu casei, descasei, cansei
de tudo e recomecei de forma diferente. Recife apresentou-se nesse tempo para
mim, violentamente natural, tristemente Solitário e apaixonadamente encantador.
Treze anos depois, apresento-me aos meus leitores com o
Pajeú, o Canhoto e o Capibaribe desaguando simultaneamente no meu mar. Quanto
mais águas me lavem, mais limpa serei e estarei para enfrentar-me e
enfrentá-los companheiros de luta. Estaremos juntos por mais vestido que você
consiga estar (com todo esse calor) e por mais nua que eu agente ser (com todo
esse frio).
E sigamos, eu escrevendo livros e você lendo livros. A
própria dinâmica da vida conterá e explicará esse dueto.
Graça Nascimento
Prosa
Que
a carapuça lhe caia
Não quero escrever coisas medíocres.
De medíocres bastam as suas tentativas mil de reinar.
Ah! Falsos palácios, onde rodopiei
ao som de valsas fúnebres que davam-me a sensação de plenitude máxima. De que
me adiantam as barreiras transpostas se hoje ainda vago perdida em meio ao
último acorde da última valsa?
Hoje escrevo apenas para cumprir uma
sina que exerce um fascino ao qual meu ser não resiste. Quero no vai e vem dos
dedos abrir o corpo e deixá-lo entregue aos delírios das contrações que
anunciam o nascimento da minha obra que nada mais é senão um conjunto de
divagações sobre tudo e sobre nada.
Sinto falta de apetite diante da
mesa do lado que de tão farta me enjoa, mesmo antes de provar qualquer um dos
seus alimentos.
Se não escrevo então somo,
multiplico, diminuo divido. As vezes é bom lembrar que um mais um são dois,
quatro menos um são três, que dois menos um é um e principalmente que um
dividido por dois sai da regra e forma um número fragmentado por vírgulas.
Prefiro as letras, pois os números
me mostram uma exatidão que não consigo ver na minha essência.
Abdiquei da beleza para me sentir
bonita, renunciei ao brilho por um lugar ao Sol. Preciso apenas de um raio Solar
sobre minha cabeça, mostrando que outras milhares de cabeças brilham no seu
reluzir; todos podemos usufruir de um único raio.
A essa altura da vida, só me serve o
verdadeiro, o corrente como o rio nascendo do nada e morrendo no mar, grandioso
e ciente do seu destino traçado pelo próprio curso.
Quero a liberdade e quero chorar
lágrimas ácidas sobre algemas que me aprisionam, até senti-las dissolvidas
diante dos meus olhos lacrimejantes de êxtase livres.
De que me serve o pássaro que aprisiono
e obrigo a chorar em canto sua dor? Como apreciar um canto que sei ser triste
por minha culpa? Esse canto por certo encherá meus ouvidos de melancolia, muito
mais que prazer. A dor de saber que abrindo a gaiola, perderei esse canto
triste, mostra-me claro que em verdade nunca o ouvi cantar.
Quero voar nas asas dos meus
passarinhos sabendo-os felizes por voarmos juntos e não nos fatigarmos como os
prisioneiros.
Pobre do homem que prende-se e não
vê, cega-se e não sente, dilui-se e não nota. O medo de que exista apenas uma
forma, impede-nos de continuar. Encontrar um suposto ideal é mais fácil do que
continuar tentando. São as falsas paradas que nos dão a falsa impressão de ter
encontrado o fim da linha. São paradas as vezes tão fortes que entrevam as nossas
asas e levamos verdadeiras eternidades para levantar outro vôo.
A esperança é a anfitriã de cada
parada e adora fazer os forasteiros atrasarem suas partidas, enchendo-os sempre
de expectativas. A esperança não faz por mal... ela só deseja que todos tentem...
ela existe para isso. Quem poderá modificar a fatalidade da missão determinada
de uma sensação?
No correr da viagem procuro captar
todas as sensações que me façam liberta. Liberta de quem? De você e da sua
falsa liberdade.
Suas
formas de ser livre me soam como receitas de bola das mesinhas das vovós, que
acalentam mas não curam, aparentam mas não são. É preciso que haja uma
hemorragia inundando de cor o seu dia e de vida ensanguentada o gelo dessa
parada que quer matá-lo.
Eu e
a justiça
No tempo em que os ladrões de paletó e gravata
estavam procurando a melhor forma de roubar os meus filhos, tomei conhecimento
que morava em um palácio uma criatura que poderia ajudar-me.
Fui imediatamente à procura dessa ajuda. Deparo-me então
com um prédio enorme, acima do qual, em posição ereta e fria, avistei uma
mulher cega. De imediato compadeço-me do lesamento físico e penso em
aproximar-me para que pudéssemos conversar sobre as nossas mágoas. Éramos ambas
mulheres, quem sabe ela me ajudaria a encontrar o ser poderoso que vivia
naquele palácio e que poderia me auxiliar.
Fui subindo as escadarias e em cada degrau me deparei com
pessoas vestidas formalmente. Elas pareciam prestar a cada minuto homenagens a
uma figura imperceptível. Pareciam também ter senhas de identificação, pois só
elas tinha acesso umas as outras. Cada uma tinha em um dedo de uma das mãos um
anel vermelho que brilhava e parecia ser o símbolo daquela raça, que não consegui
identificar com nenhuma outra tamanha a prepotência.
Com cada gesto, cada palavra, cada expressão, eles
demonstravam e transpareciam o quanto se sentiam altivos e superiores. Era como
se lhes fossem atribuídos poderes de domínio. Como se das suas bocas saíssem a
criação das palavras que pudessem ser ditas, dos seus olhos saíssem a maneira
padrão de um olhar, das suas mentes saíssem os pensamentos dignos de serem
pensados. Temi-os de imediato. Nenhum pareceu-me preocupado em fundamentar a
criação das suas obras na desordem que girava ao seu redor e sem, na
permanência de uma ordem e cumplicidade internas, que lhes garantiam o poderio
e o domínio diante de outros seres.
Nem por um momento senti-os Soltos, apesar da imponência
que transpareciam em seus rostos frios.
Estava claro que eram servos de alguém. Todos
reverenciavam alguma coisa acima das suas cabeças, já que prestavam continência
em atitude de bajulação a algum outro ser que reinava no andar de cima daquele
palácio tenebroso. Continuei subindo as escadas. Agora buscava encontrar a
criatura que poderia aplacar a fúria dos meus juízes e a mulher cega que vi de
baixo e despertou-me a vontade de ver de perto. Mas quem seria a figura que
conseguia dominar um exército tão atrevido?
Fui até o fim da linha e qual não foi a minha surpresa
quando constatei que era justamente a mulher cega que reinava naquele castelo.
Trêmula, confusa e emocionada tentei me aproximar e perguntei:
- O que houve com os seus olhos?
- Eles estão abertos.
- E eles enxergam?
- Só os palácios.
- E o resto do mundo?
- Não conheço o mundo.
- Você já foi mãe?
- Sou estéril.
- E já sofreu por isso?
- Produzo outros filhos.
- E os ama?
- Não conheço sentimentos.
- Em que se baseia para reinar?
- No poder em si.
- E o que lhe traz o poder?
- Ele garante.
- Garante o que?
- O meu reinado.
- Você pode salvar os meus filhos?
- Não os conheço.
- Quer ir vê-los comigo?
- Não tenho tempo.
- Mas você decidirá suas vidas.
- Meus representantes.
- E eles vão conhecer os meus filhos?
- Não conheço os meus representantes.
- E como lhe representam?
- Agindo em meu nome.
- E você permite?
- Eu ordeno.
- Por favor, me ajude.
- Não me interessa esse lado.
- Que lado lhe interessa?
- Eu sou os papeis, as leis, os mandatos, as prisões, os
processo, apenas isso.
- E as pessoas?
- Elas me servem.
- E as letras dos papeis, o conteúdo das leis, a razão
das prisões, as lesões dos laudos, os porquês dos processos?
- Outros cuidam disso, apenas aplico-me.
- Veja o outro lado da minha vida.
- Não é da minha área.
- Mas eu cheguei a você de uma longa estrada, deixe-me
pelo menos descrevê-la.
- Só me importa o ato.
- Mas os atos são reações.
- Já disse não lido com sentimentos.
- Mas os homens são o que sentem.
- Eles que livrem-se de mim.
- Eu sou Mãe.
- Eu sou estéril.
- Tente.
- Retire-se.
E a
mulher calou-se diante de mim fria e implacável. Fui então presa por braços
fortes dos seus lacaios e expulsa do palácio onde ousei buscar ajuda.
*Escrito em 1985 quando numa separação
litigiosa eu tentava conseguir a posse dos meus filhos. Não consegui e hoje 18
anos depois ambos estão presos no presídio Aníbal Bruno e a mesma justiça que
tentei pedir ajuda condena-os com a mesma frieza que condenou-me e afastou-os
de mim.
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