II
AS PESSOAS HUMANAS, JUSTAS E DIGNAS ALCANÇAM UM GRAU DE EVOLUÇÃO TÃO PURO QUE AMPLIAM SUA BONDADE E PENSAM QUE TODO MUNDO É IGUAL A ELAS...
sexta-feira, 18 de março de 2016
quinta-feira, 17 de março de 2016
MEU CORPO
Meu corpo é minha forma humana
Meu corpo é um conclusão...
Meu corpo é um conclusão...
Resumo da minha energia
Concreto do meu abstratismo
Tradução do meu existir
Concreto do meu abstratismo
Tradução do meu existir
Meu corpo é meu instrumento
Com ele tenho a ilusão de ter pés
E posso seguir caminhos
Posso sentir espinhos
Com ele tenho a ilusão de ter pés
E posso seguir caminhos
Posso sentir espinhos
Meu corpo é minha agonia
Traduz a dor e a alegria
Induz movimentos de salvação
Me faz sentir que tenho mão
Traduz a dor e a alegria
Induz movimentos de salvação
Me faz sentir que tenho mão
Para que abrindo-a entregue
Ou fechando-a negue...
Ou fechando-a negue...
Meu corpo é minha virtude
Meu corpo me dá quietude
Força-me a ser humana
Obriga-me a essa guerra
Meu corpo me dá quietude
Força-me a ser humana
Obriga-me a essa guerra
Meu corpo me pertence
E só a mim e a terra...
E só a mim e a terra...
sábado, 19 de dezembro de 2015
Poética possessão: O mar da poetiza
Graça caminhando em seu Jardim
por
Marcos Costa Saraiva
“A
poesia, no impulso primeiro que a compele à existência, é anterior a linguagem”
Paul
Zumthor
No calor da poesia
Em meio às atuais poéticas femininas, a pernambucana Graça Nascimento eclode e contrasta, fomentando o mar de vozes na luta pelo seu verdadeiro espaço na literatura contemporânea. Unindo o corpo ao 'ser' da poesia, seu texto e co-texto nasce atemporal, figurando paulatinamente no imaginário da guerrilha. Agora, com uma página inédita (https://www.facebook.com/ Graça-Nascimento-1532067800 408443/?fref=ts), e um canal no YouTube (http://www.youtube.com/ channel/ UCy-jP_6bC1rf1cZPFql3UBg), a poetisa, artista, autora de "Na Nudez da Poesia" e "Outras Graças", chega ao seu público por um viés multimídia. Em sua linha do tempo no Facebook a autora postou no ano passado uma antologia de vídeos e textos anunciando ao que viria em 2015 e 2016.
Em Janeiro de 2015, sua apresentação no Sertão do Pajeú, no festival realizado com apoio da Fundarpe, comemorando o centenário de Louro do Pajeú (precursor das cantigas de violeiros) levou o público até a poesia. As entradas performáticas, os movimentos do seu corpo (elétrica e impiedosa) tinham um tom mais forte quando ditas segundo após segundo. Graça possui um espírito feminino transcendental, evoluído, uma Alvorada.
Quem teve o prazer de presenciar a poetisa em ação, viu que ela mora numa filosofia praticante – a da poesia como estilo de vida. Impactar-se com sua poética é um dos resultados dessa experiência; pois, já não se fazem livres-pensadoras e escritoras como Graça, – que segundo o professor do Conselho Editorial da Universidade Federal de Alagoas, Antônio de Andrade Filho, interpreta a natureza na modernidade e com estilo.
Nesses tempos sombrios, de precariedade intelectual e ditaduras ideológicas, totalitárias, econômicas, midiáticas, editoriais, sua obra inteira abre um espaço para refletir questões como o tempo do fazer poético, do erotismo e da política do corpo. Os vídeos da autora, intensos, sem edição, declamando de forma nua e crua, são outro acesso às suas formas de expressão artística, iniciadas nos anos 90. Há de iluminar-se sua obra lírica. Há de se impor que Graça é muitas, outras, várias. Uma delas é a cronista, que em sua página, criada há pouco, relata através de pequenos-ensaios suas impressões com a arte, num estilo breve e preciso. Outra é aquela dos vídeos: audaciosa, efusiva, em chamas.
Vênus em fúria
Diz Osho que “a cada cem poetizas vivas, uma é verdadeira”. O ditado do filósofo e guru indiano, proferido por um dos admiradores da poetiza na terra da poesia; São José do Egito (PE), elogiando sua apresentação no festival que celebrava o centenário do poeta Lourival Batista, no início de 2015, condiz com a conduta de Maria das Graças do Nascimento, ou simplesmente Graça Nascimento. Filha de Dona Mercês e Zé Caboclo, autora de dois livros; "Na nudez da poesia" composto por poesias reunidas no final dos anos oitenta, e o outro, lançado em 2004; "Outras Graças" – ambos numa proposta contraeditorial; amostras da sua composição poética ininterrupta, acessível aos que possuem um dos raros exemplares de sua obra, ou acompanham suas publicações em sua página, já que as edições e tiragens reduzidas – opção da autora, de reproduzir sua obra em simbólicos 1000 livros a cada edição –, estão voltadas para um projeto bastante coerente; o da criticidade como valor central da própria obra, o qual aponta o horizonte de uma autora firme, livre de apadrinhamentos e oportunismos editorias, em comunhão com suas próprias sentenças, iniciando por uma crença sincera a questão do autor no âmbito do mercado, como dono de seu próprio objeto: o livro. A mesma, que já foi excomungada da Igreja Católica Apostólica Romana e disse estar de vez fora-do-sistema, a quem poderíamos intitular Rainha-da-Lapada ou na tradução kafkaniana: a Bicha-de-Sete-Cabeças, é uma ferrenha pensadora dos direitos humanos, da vida, além de uma pesquisadora da alma e dos mistérios que esta encerra. A mesma pessoa, que uma vez (quando transpirava a imagem – como até hoje, de uma hippie-escaldante-de-tirar -o-fôlego) antes de viajar em busca das experiências culturais Brasil afora, teve sua obra inteira destruída nas águas do Rio Capibaribe, lançadas contra a lépida correnteza, também mostrou uma enorme espiritualidade através de uma das suas muitas performances (produzidas com ajuda da filha Florbela Nascimento e do neto Samuel) filmadas e publicadas na internet, em que aparece completamente nua nas tabocas canhotinheses, no auge dos sessenta anos, numa cena similar ao nascimento de Vênus, nascendo das águas, evidenciando sua comunhão com a natureza, e que acabou gerando uma forte mitologia em torno da sua figura, sendo considerada entre alguns quase imaculada; os quais no Facebook criaram uma corrente de leitores e artistas chamada “#somostodosgraça”, onde fotos com seus livros, performances (destaque para a do poeta e artista visual Manú Maia) e textos sobre sua poesia, evidenciavam uma bela homenagem. Também, uma mãe dolorosa – seus dois filhos mais velhos foram logo cedo tirados de si – mostrou ser uma mulher guerreira, esforçada e fascinante, como comprovou nos anos que trabalhou na administração pública, no município de Canhotinho (PE), onde acompanhava a luta do povo nas suas variadas necessidades.
Também tem os irmãos da poetiza, dos quais, dois inseriram-se nas artes: o já falecido poeta Zeto Nascimento, importante músico e compositor da viola, popular entre cantadores e violeiros, e Antonio Nascimento, o poeta Neném. Sua mãe, multiartista de mãos cheias, foi especial em sua formação, desde cedo facilitando seu contato com a literatura, motivou-a a compor os primeiros versos.
Diferente de outras poetizas, a trajetória de Graça mantém-se resguardada. Apesar de participar de um grupo ou genealogia artística coroada (manteve contato com alguns poetas e cantadores integrantes de uma cena bastante lendária, parte significativa do cânone de formação do imaginário popular do homem nordestino, de cordelistas, artistas populares, e violeiros), convivendo próxima de nomes como Lourival Batista; o “rei do trocadilho” ou apenas Louro do Pajeú (este fez o posfácio de um dos seus livros), de Job Patriota, de Manoel Filó, de Luiz Homero, de Severina Branca e de muitos outros, mantendo-se uma mulher reservada, nunca foi de se iludir, o assédio midiático está longe de sua utopia. Em versos mais estrondosos, como esses: “Padres tomam vinho/ Precisam viajar os coitadinhos/ Intelectuais, artistas, poetas comem docinho/ LSD.... uma pitada de prazer/ E a sociedade hipócrita e doida/ Tenta criar uma eficiente política anti-drogas.../ E o pior... colocam a santa CANABIS no meio de tudo isso.....” a crítica ao sistema é explicita, sendo esse um ponto característico do seu universo, basta uma estrofe, uma pitada do seu olhar e pronto: qualquer instituição se desintegra.
1001 noites
Se para Carlos Eduardo Carvalheira “em Clarice [Lispector], o verbo se faz carne e a cor se desvanece no ar, criando forma... tomando o corpo”, em Graça o verbo é o próprio corpo, e o ar inteiro é tomado por esse verbo – quem já a viu declamar o sabe. Leitora de Clarice, na relação que aproxima essas e outras autoras (como Cassandra Rios, Elisa Lucinda, Alice Ruiz, Conceição Evaristo, Gilka Machado, Alzira Rufino, Florbela Espanca, Hilda Hilst, Paula Tartebal, entre outras) algo indefinido, algo mediado pelos seus gênios, pelas suas personas, pelas suas histórias de vida (tão pungentes e alegres), talvez, pela unidade harmônica de suas obras (umas mais e outras menos), ou pelos seus corpos vociferantes, radioativos, cataclísmicos, explosivos, irradiantes, algo contido na linguagem secreta da poesia, do devaneio, é o combustível para uma poética particular, que tira o ar. Tira o ar. Como eu testemunhei, junto ao público, extasiado em São José do Egito, na noite do dia 06 de janeiro de 2015.
Na escrita, da tradição popular sonetista ao verso livre e expansivo, engloba-se também ao seu estilo, na performance, o modo efusivo como recita, sempre impondo uma experiência prolongada e inesquecível do ato. Algo que nos faz perceber ao que veio Graça, numa visibilidade que vai sutilmente emergindo.
A poetiza parece ter saído de um desses contos, entre as 1001 noites, e aberto a caixa de pandora raicheana, redescobrindo assim outros locais da literatura, de forma prática e não teórica: a voz, o corpo, o movimento, a memória, a expressão, tudo isso através do filtro amplia-dor da palavra, impulsionando sua trajetória para um caminho perigoso, o da arte verdadeira. Altiva oradora rendeu-se em 2015 a uma pequena temporada de apresentações, onde é impossível não contagiar-se diante o fluxo, o ritmo e a dicção dos seus poemas. Como na realizada em Março, na Praça do Arsenal, em Recife, num evento que homenageava o dia das mulheres.
De frente a poetiza estamos diante uma poesia, obra do sentido e sentimentos, do seu lirismo e das várias influências; do simbolismo metropolitano até uma sensualidade bárbara, altiva e visceral, as palavras desabrocham conforme o verbo: “Igualmente a lua cheia/ no romper de uma aurora/ quando o sol mostra que é hora/ e que o dia já clareia/ a lua não se aperreia/ de se ir e ele ficar/ pois sabe que vai voltar/ e a natureza não é contra/ a gente se desencontra/ só pra poder se encontrar".
A respeito da enunciação, aspecto importante para a compreensão do impacto da sua obra, Paul Zumthor afirma: “a enunciação da palavra ganha em si mesma valor de ato simbólico: graças à voz ela é exibição e dom, agressão, conquista e esperança de consumação do outro; interioridade manifesta, livre da necessidade de invadir fisicamente o objeto de seu desejo: o som vocalizado vai de interior a interior e liga, sem outra mediação, duas existências”.
Jardim das maravilhas
Entre a sinfonia de velozes cigarras Graça vive rodeada por um notável jardim, cuidado pelo seu companheiro de longa data, o professor de História Sebastião (Bastinho), também um naturalista, bruxo, sábio fitoterapeuta e defensor da natureza. Nesse lugar semelhante a uma pequena floresta, convivem variadas espécies de plantas, desde árvores até flores, que nasceram entre os canteiros. Os fatores biológicos de sua atmosfera poderiam influenciar o ritmo de um construto poético. Hão tardes agitadas, em que o vento sussurra com mais força, e os galhos em movimento se precipitam antes de um momento de calma. Em outro sentido, tardes maternas, em que a poesia acolhe, fazendo-nos lembrar a melancolia do poeta Augusto dos Anjos ou os vultos de Fernando Pessoa, ambos em quadros na parede, destacados entre outros escritores na sala da poetisa.
Em seus versos, existe em curso uma poderosa tomada de consciência, algo como o despertar do comodismo coletivo, da letargia generalizada, como a constatação do conflito nos acontecimentos, algo como um soco na alma, algo localizado entre as margens de um rio poluído e o nascimento de uma nova orquídea, a solução romântica para o mundo. “É dessa sensação visual da realidade, tal qual a Graça e cada ser humano experimenta individualmente para ‘guiar-se por si próprio’ e ‘gozar da beleza das cores e da luz’, é dessa imagem ótica do espírito e do corpo, que se domina, dirige, critica a cidade, apreende o real, vive livre na comunicação falada e escrita; limitando-se a leitura do Livro do Mundo e do estudo de si próprio para conhecer o outro” arremata Antônio Andrade Filho.
Mais do que uma simples apresentação, quando sobe no palco, Graça manifesta uma jornada, provocando-nos a possibilidade de uma redenção, seus lampejos xamânicos e o impasse performático faz questionarmo-nos: “é possível o que estamos vendo?”.
***
Se ainda estivessem vivos, André Spire ou Paul Valéry poderiam assumir uma comparação pungente sobre a relação da performance graçaniana com o crescimento das plantas, do jardim, de tudo o que está de fato em pulsação, do “fato poético na perspectiva dos ritmos biológicos” como disse Zumthor. O pesquisador norte-americano se pergunta: “Qual a natureza dos laços que ligam a poesia ao nosso corpo, na operação mediadora da linguagem?”. O foco na oralidade antecede uma resposta, estamos diante uma forma mágica e poética de observar o mundo, uma arquitetura ritual insondável em termos técnicos, uma real manifestação da “aura” benjaminiana. Nesse sentido, a presença física do expectador-leitor tem um importante papel na apreciação de sua performance/obra, como jogo fruidor, um jogo de laços entre o olhar e sentir uma estrutura escultural em versos e calor, sintomas biopsiquícos da possessão.
Aos que tem olhos vejam: a clínica da poetiza (ou o seu olhar) é sua oralidade (e performance), seu fato fundador da própria estética. A oralidade sobreviveu à reprodução técnica através de artistas do porte de Graça Nascimento. Ela é a prova viva que os textos escritos devem falar. Seguindo essa afirmação, e a pergunta lançada por Irene A. Machado em seu ensaio "Oralidade e literariedade: a poética da tradição oral": “que tipo de oralidade é esta que se desenvolve no confronto entre a fala, escritura e/ou reprodução técnica?”, lançamos o desafio aos nossos contemporâneos para estudar sua oralidade, seus mais amplos aspectos. Precisamos falar sobre Maria das Graças Nascimento. Lê-la. Vê-la. Indo ao encontro de suas performances, de seus escritos, de suas nuances, mergulhando em sua efígie.
A autora de "Na nudez da poesia" possui uma revelação mais forte reservada a cada encontro, a cada representação, a cada ato, a cada gesto, nas multiplicidades das suas possibilidades, habitam sua presença como um dom, uma vocação. Segundo Machado: “a performance na poesia oral é o momento da consagração de um estilo. E esta é uma valiosa herança da poesia homérica”. Sua performance tem produção simples, crua, mas acima de tudo bem elaborada, ecoando no corpo o reflexo de uma feminilidade forte: a artista sobe aos palcos descalça, nua de efeitos especiais, além dos colares que usa no pescoço e dos longos vestidos, vívidos, feitos por mãos caprichosas, que dão a sua presença um charme ímpar, raro – contra a ditadura de todas as aparências, Graça se firma como uma das únicas poetizas vivas na América Latina que fabricam através daquelas palavras de violência e beleza, os estados de perca e desespero sofridos por todos nós e pelo conglomerado através da História, alguém que traduz o choro de um povo marcado, alguém capaz de gritar isso em versos, como no épico Época do desespero:
ÉPOCA DO DESESPERO
Liberdade para aqueles que estão vivos
Piedade para aqueles que estão mortos
Piedade para aqueles que estão vivos
Liberdade para aqueles que estão mortos
Clamores, gemidos
Manchetes, horrores...
Acontece o flagrante
Depois a prisão
O soco
O saco
O interrogatório
O reformatório
Reformar o quê?
O sistema ou você?
Quem é vítima?
Quem é culpado?
Quem é certo?
Quem é errado?
E nos presídios rebeliões
Gritam os jornais
Alertam os comentaristas
Buscam formas os alquimistas
Crescem os nomeados
Agonizam os condenados...
E nos presídio rebeliões
Homens e meninos
Drogados, assassinos, ladrões
Seres traduzindo estórias
Meninos carregando sinas
Sinas de meninas que são suas mães
Mães lesadas, nocauteadas nos ringues da vida
Que foi seu único palco
E na desordem da cidade
Na ausência do amor
Meninos pobres e meninos ricos
Se misturando na dor
Na agonia
Na luta
Na covardia...
Na esquina do bairro burguês a favela
E no coração do adolescente a curiosidade
A leveza
A mistura
A amizade
No vídeo aceso a propaganda
No computador a dor
E no coração do adolescente a ansiedade
E nos presídios rebeliões
Meninos pobres drogados
Meninos ricos ladrões
Meninos ricos drogados
Meninos pobres ladrões
A ausência do bem
Em quem?
No bandido?
No sistema?
Que dilema!
Tudo igual o mesmo mal...
O surto
O estupro
A época dos presídios da alma!
Nas igrejas a fraternidade
Falando do prisioneiro
Nos corações o cativeiro
Do Cristo morto
Ensanguentado
Exterminado
Em Roma cercado de ouro o papa chora
Enquanto seu segurança segura uma arma
Igual a do policial
Igual a do bandido
Quem sairá ferido?
Um homem armado garante a paz
Um menino drogado declara guerra
E nos presídios retratos mórbidos
Da década da carnificina
Da deslealdade
Da iniquidade...
E no meu coração
Uma monstruosa rebelião!
Na capa de seu primeiro livro, onde posa seminua para as lentes de Luiz Câmara, entrecoberta por um véu branco, Graça é sedutora e enigmática, como a Ismália de Alphonsus de Guimarães, ou aquela pitonisa do oráculo de Delfos, trazendo na pose a transgressão, um dos símbolos característicos de sua obra. Num dos seus sonetos mais cultuados; "A rola do meu amado", a voz extasiada trata com sofisticado lirismo de falar de como é prazerosa a experiência com o sexo do parceiro:
A rola singular do meu amado
Tão igual e diferente das demais
Entra em mim na sinfonia de alguns ais
Me mostrando o lado santo do pecado
Quando cresce no crescer da minha entrega
E endurece para entrar no paraíso
Abro as portas sem temor e sem juízo
E ao amor nada mais a vida nega
Sedutora e atrevida me domina
Dominada em meu poder que lhe fascina
Entra e sai até me ver cair vencida
No prazer de entregar e possuir
Num só ato a delícia de existir
Ao senti-la me regando com a vida.
Aqui, o erotismo está impregnado de uma postura política, ética; o questionamento do patriarcado contra o legado machista da cultura ocidental, que mesmo quando inconsciente, são caracteres máximos da linha graçaniana, como nesses versos de Sujeiras machistas: “Eu queria que me definissem/ O que é uma puta.../ A todos que perguntei/ A resposta que encontrei/ Foi vaga/ Mal paga/ Ou mal elaborada./ Se as procurar na zona/ Por certo lá não há puta/ Essa é a linguagem da plebe,/ O termo que as define/ Em português, é prostituta./Mas há aquela puta que levita/ Pensando esse ar que evita/ O passo largo da mulher/ Que quer mostrar o que é,/ Mas quando tenta uma abertura/ É impedida pela nomenclatura (...)”.
Outras Graças
Nas redes sociais vemos uma participação intensa, o lado romântico da ex-gestora de cultura e escritora é exercitado, onde posta crônicas regularmente; concisas observações sobre a atual cultura. Discute com a urgência de um despertar social, a legalização da maconha, a crítica ao cinismo nas ideologias religiosas e políticas, e também sua posição a respeito da sexualidade da mulher pós-moderna. Leitora e fã do filósofo austríaco Willhem Reich, criador do Movimento Sexpol, também é uma meiga radical, seus textos estão direcionados para uma reflexão das mazelas da sociedade, seja através de suas poesias, seus aforismos, de suas crônicas, de seus contos (destaque para "Mães assassinas do Sol").
A questão da oralidade graçaniana passa por tópicos da memória, da cultura e do lugar do artista no século XXI, consolidando-se como forte marca da uma presença afirmativa. Aqui a pulsão literária aponta para a tradição mais forte da cultura popular: a de dizer o mundo – alcançando o potencial da vida através da arte.
Como afirmou Gaston Bachelard, em "A poética do devaneio": “ao maravilhamento acrescenta-se, em poesia, a alegria de falar”. Perceber as ocupações espaciais do dizer e de outros elementos associados a ele, como o ritmo e a entonação da fala, ou dos movimentos e do domínio do corpo, compõe parte do seu discurso poético. Em suas declamações o poema torna-se ineludivelmente poesia, o texto vivencia sua literatura. “O conjunto das pesquisas poéticas modernas testemunha um fato inelutável, do qual podemos modular a expressão, mas não negar o alcance: somente os sons e a presença 'realizam' a poesia”, afirma Zumthor, e complementa: “o efeito poético é tanto mais forte quanto melhor soa a voz: nos interstícios da linguagem imiscui-se, pela operação vocal, o desejo de se desvencilhar dos laços da vida natural, de se evadir diante de uma plenitude que não será mais do que pura presença”. Para ele, há um jogo do corpo, em que valores pulsionais e dinamismos geram o ato performático. É nesse prazer que a arte graçaniana reside.
Para Luiz Nazario: “a arte é a libertação do homem na esfera do imaginário, de suas representações materiais e de seus materiais de representação: sons, palavras, cores, coisas e corpos não são mais manipulados pelo princípio de realidade, mas pelo princípio de prazer”. Na autora, a literatura se integra com a vida cotidiana num movimento de prazer ininterrupto: "O sertanejo hoje acordou feliz/ choveu a noite prometendo vida/ vê-se o sorriso e a esperança ida/ na asa branca e nos colibris". Ao mesmo tempo em que narra as intempéries do humano, no plano de um espaço, de um tempo ou de um afeto, a poetiza se afasta do regime banalizante da sociedade: “é na recusa de participar que o artista forja sua dignidade, criando uma ordem antitética à ordem repressiva que o mundo reproduz sem cessar. Se artistas de vanguarda e artistas de massas aperfeiçoam as técnicas caudilhistas de conduzir o rebanho, o verdadeiro artista, incapaz de integrar-se à cadeia libidinal do poder, canaliza sua energia para o imaginário, desafiando, nessa escolha individualista e anti-social, o princípio de realidade que aliena a todos”, diz Nazario, e ainda caracteriza: “aliada permanente do eros criador, a arte constitui-se contra toda opressão: nasce da recusa instintiva da violência, cresce no espaço de uma racionalidade irredutível às leis do mercado e morre refletindo a verdadeira face do mundo, no instante em que este prefere quebrar seus espelhos a assombrar-se com a própria monstruosidade”.
Se na descrição do antropólogo Pierre Clastres, na introdução da obra "A fala sagrada", em que este discute o papel da palavra falada para os índios guaranis – importantes sujeitos na construção da identidade nacional, o termo “Belas Palavras” são “as palavras que lhes servem para se dirigir a seus deuses. Bela linguagem, fala sagrada, agradável ao ouvido dos divinos, que as consideram dignas de si. Rigor de sua beleza na boca dos sacerdotes inspirados que as pronunciam; embriaguez de sua grandeza no coração dos homens e das mulheres que os escutam”, em Graça, o elo perdido entre o humano e a divindade são recuperados através de uma relação direta com a cultura e o sujeito, nela, as “Belas Palavras” são o choque cotidiano: “Será pecado desejar a semelhança/ E confiar na minha própria confiança/ Ser penetrada de forma singular/ Sem perceber o que vai me penetrar”; a agonia visual: “Bêbados cintilantes e viajantes/ Criamos formas de resistir/ Embarcamos em busca da valsa/ Desembarcamos cansados de caça/ Desembocamos num mar que nos come”; a válvula de prazer: “Hoje eu gozarei em você/ Se fosse como você foi,/ Se lhe usasse como fui usada/ Poderia lhe ter numa trepada/ E sentir-me poderosa"; ou a redenção lírica: “A luta feminina aflita e libertária/ Que tenta de valores falsos nos livrar/ Transforma quem se atreve em alvo singular/ De uma moral tirana, imposta e arbitrária/ E são nossos amantes os que mais nos temem/ Quanto mais nos enxergam mais com medo tremem/ Negando-nos covardes para preservar/ Um poderio nojento que os faz carentes/ Cheios de fortaleza, mas tão dependentes/ Da força feminina que tentam negar”; remetem a poética da autora a uma imagem atômica de possessão. Uma fala propulsora da embriaguez aos nossos ouvidos: “é mesmo verdade o que estamos ouvindo?”
Estação da poesia ou a dança da dor
A obra da poetiza pode ser vista como um longo poema, um sofisticado romance, uma crônica poética, um caleidoscópio da própria Graça em constante movimento, onde se misturam lembranças, reflexões e escolhas profundas, acumuladas nos caminhos de uma bela vida & postas no seu inventário. Nas palavras de Raimundo Carrero “construir uma obra poética é algo profundamente doloroso e inquietante. Ocupa uma vida inteira com marcas e cicatrizes. Nem sempre oferece bons resultados, mas significa o sacrifício de uma existência”. Como podemos ver nos versos dedicados a um de seus filhos: “Quando vi você nascer/ Nasci junto com você/ Hoje temos nove anos/ De certezas e enganos/ Com escuridão e brilho/ Tenho nove anos de mãe/ E você nove anos de filho”.
A tardezinha, em sua varanda, uma pequena queda d'água flui sobre a fonte de pedras. Um séquito de cães inspeciona a frente da casa. Despenca sobre o vão silencioso no piso cor de beterraba um sossego primaveril, vindo dos filtros dos sonhos, espalhados não só no cômodo, mas por toda a residência. É nesse ambiente rústico, místico, acolhedor, e quase selvagem que ouvimos o som de invisíveis tambores, atravessando o instante, cortando a fome do som, como um trovão silencioso. O ritmo dos batuques remete a uma passagem sagrada, por onde se entra para encontrar o conhecimento, onde outras poesias habitam, também outros sonhos, paisagens, revelações.
É a poesia que supera o vazio do real, e não o contrário.
Uma vez, como ela mesma disse, sua poesia já nasce rimada e metrificada, (acredito que em amplos aspectos), mesmo aquelas, que se apresentam no verso livre, estilhaçando as convenções. No mistério da criação poética essa poderia ser uma descoberta positiva sobre a literatura, como andar no labirinto da poesia e finalmente ter coragem de ir sem hesitar, de sangrar, chorar, rir e morrer, para renascer de novo como o corpo da fênix. Numa época de teorizações infindáveis a respeito da criação literária, e da transformação de poetas e poetizas em bustos ambulantes, distribuidores de autógrafos, com razão, precisamos ter dimensão da totalidade que a palavra poesia encerra, sem limitar-se a classificações taxadas, modelos e padrões interpretativos. Graça foge disso e está completamente nua, de novo, uma poetiza maldita, marginal e dolorosa, possuída pela poesia, precisando dizer as suas dores, dizer apenas, e dizer de novo, revestindo-se do nascimento e atestando-se numa graça infinita, como nos versos de "Dança da dor":
Sentindo a dor universal que me domina
Relembro Augusto já levado pelos Anjos
Solto meus sons e busco louca seus arranjos
No infernal tom dessa vida que alucina
E toda dor que há no mundo se combina
Me faz dançar o som que vem de estranhos banjos
E crio passos pra demônios e arcanjos
Que bailam morte e esse bailado me fascina
E nessa dança de agonia e desespero
Solto meu corpo sensual como o primeiro
Impulso louco que tive de ser feliz
Mas sou parada pela sensação de morte
Que interrompe esse concerto dando um corte
Que para sempre há de deixar a cicatriz.
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