Mães
assassinas do Sol
“Não olhe para o Sol Gracinha que você
fica cega”
ou
“Essa menina só vive de olhos fechados
sonhando”
...e
todos sorriam
Mês de agosto, década de noventa.
Estou aqui tentando amanhecer junto com o dia que amanhece. Olhei para o Sol e
lhe pedi coisas, mandei recados, acreditei na nossa unidade. Só que não tremi
de emoção nem o amei com a intensidade que amo o meu homem. Busquei olhos no
Sol. No exato momento do olhar profundo, me cobrei a emoção que sinto quando
olho no olho amado.
É a emoção de um olhar sem olhos que
me falta para que eu seja feliz. Para que eu seja realmente humana e goze na
vida o paraíso da plenitude. Enquanto busco olhos no Sol, vou morrendo de dor e
de medo de estar sozinha. Sem olhos nos meus olhos.
Quando a minha mãe dizia:
- Não olhe para o Sol Gracinha que
você fica cega... ela tinha dois olhos frios que me fitavam firmes. Mesmo me
causando quase pavor, me davam a segurança de não ficar cega. Minha mãe me
hipnotizava com aquele olhar que baixava o meu e impedia-me de harmonizar-me
com o Sol. Minha mãe... ela só queria que eu não cegasse e para ela o Sol
cegava. Só que junto a voz da minha mãe havia a lógica palpável de tudo. Pela
coerência cientifica e concreta o Sol cega.
De acriança, a adolescente e depois
a adulta, cada vez mais o mundo me provava que o Sol cega. Perdi a chance de
fazer amizade com o Sol desde cedo.
Mas como toda criança eu insistia.
Fechava então os olhos e ficava pensando com as pálpebras clareadas pelo Sol
que as invadia. Quando virava assim na direção do Sol, eu não tinha em meu
fechar de olhos a escuridão. Meu escuro era um marrom bem clarinho e quanto
mais mirava o sol mais amarelinho ele ficava. Eu passava então minutos e
minutos parada diante do sol, num fitar de olhos sem olhos e viajava em mim
mesma e no sol. Aí sempre ouvia uma gargalhada. Ou meu pai ou minha mãe:
- Essa menina só vive de olhos
fechados, sonhando.
Eu acordava envergonhada e com medo
que minha mãe soubesse que mesmo de olhos fechados eu buscava o Sol.
O Sol cega e o sonho é engraçado.
Engraçado num sentido bem sem graça. Os risos eram de deboche; igual o riso das
minhas irmãs mais velhas quando examinavam minha xoxota.
...Eu tinha oito anos de idade e
sempre fui dada a manias, cacoetes, como dizia minha mãe. Nesse época eu
comecei, a cada dez passos que dava, me agachar, de modo a encostar o calcanhar
na xoxota. Aquilo para mim era um prazer natural, como era antes olhar o Sol de
olhos fechados ou abertos, pois não era mesclado agora pelo medo de ficar cega
ou parecer engraçada.
Minha mãe começou a observar e
reprimir aquele hábito. No começo sem grande irritação mas depois foi ficando
cada vez mais agressiva e me proibindo de fazer aquilo.
A interferência dela só estimulou a
minha vontade de fazer. Tornou-se bom demais. Cada vez mais eu apertava o
calcanhar na xoxota e me dava prazer. Um prazer diferente daquele que surgiu
natural. Antes era só um toquezinho e uma sensação de paz. Depois eu apertava,
às vezes doía, mas eu fazia.
Um dia minha mãe resolveu examinar a
minha xoxota para ver o que havia de errado. Seus olhos eram gelados, seus
gestos acusadores. Eu era submetida a uma observação, pois não estava agindo
normalmente. Me levaram para um quarto; ela e minhas duas irmãs mais velhas que
na época tinha 15 e 16 anos. No quarto tiraram minha calcinha e abriram minhas
pernas. Minha mãe na frente e elas duas, uma de um lado e a outra do outro; com
um riso que até hoje não esqueço. Coitadas, não faziam por mal estavam também
sendo cruelmente assassinadas na fase mais bela das suas vidas.
Eu estava com medo e com vergonha.
Estava chorando, mas minha mãe me segurava como quem segura uma criança para
dar um remédio que cure sua doença. Examinando tudo minha mãe chegou a
conclusão que não era doença, era mesmo safadeza e fui terminantemente proibida
de fazer aquilo.
Nunca mais me masturbei, só com
dezessete anos. Fiquei com medo do meu corpo, das minhas sensações naturais.
Hoje, com mais de quarenta, eu ainda
tenho medo de cegar olhando o sol e tenho medo do meu corpo.
Porque olhos nos olhos para me
sentir protegida? Olhos para criar uma corrente particular eu e alguém... e a
corrente universal eu e a vida? É essa que eu busco e é nessa que eu me
encontrei. Olhos que sirvam apenas para se olharem e não para guiarem-se.
Quero olhar para o Sol e não cegar
respeitando a luz natural. Olharei apenas quando ele também penetrar nos meus
olhos. Nas suas horas amenas, onde ele brilha sem queimar, brilha descansando.
Não quero segurar-me no seu olho por todo dia em busca de todo brilho. Claro
que ao meio-dia o Sol cega. O meio-dia é dele e não meu. Seu eu invadir as suas
horas ele poderá ferir-me e ferir-se. Harmonia com o Sol... verdade de um
olhar.
Hoje tento dar de presente o Sol
para os meus filhos e eles não aceitam alegando que o Sol cega. Como não existe
o meu olhar autoritário para lhes dar segurança, eles temem mais ainda o Sol. É
que as leis lógicas já lhes tomam. O sexo deles foi livre de mãe e eles são
livres de mãe. São poucas as mães que querem ter filhos livres de mãe e os meus
filhos ainda não viveram o suficiente para abraçarem uma causa experimental e
automaticamente transformarem-se em cobaias humano-sociais.
Se você tem um filho adolescente, ou
se você é um filho adolescente talvez se interesse por essas coisas. Se você
não é um filho adolescente, mais de vinte, trinta, ou cinquenta, ou mais, ou
menos. Se você é um filho de qualquer idade, sabe a dor e o êxtase de ser
filho. Muito mais dor ou muito mais êxtase? Se além de ser um filho de qualquer
idade, você for ainda um pai ou uma mãe de um filho de qualquer idade. Na chegada
do terceiro milênio, amor e dor rimando desafiadoramente sobre a humanidade e
sobretudo sobre os filhos, os pais, as mães e os poetas.
Quantos Cristos? Quantos Reichs?
Quantos Josés? Quantas Marias? Quantos pais? Quantos filhos? Quantos poetas?
Meu filho me quer e eu o quero, mas
estamos separados. Arde em mim a vida dinâmica que me impele para frente apesar
dele. E ele segue por si apesar de mim, ele tenta suas descobertas. Se ele não
me descobre melhor é porque estou encoberta com o nome de mãe.
MÃE = PAPEL A DESEMPENHAR
Ele veio da árvore que sou, como
fruto e como semente; deve ser ingerido pela vida, lançado ao solo para
transformar-se em outra árvore que nos conterá e garantirá a nossa perpetuação.
Mas eu ainda serei apesar dele e ele sempre será apesar de mim.
MÃE = AMOR SEM PAPEIS A DESEMPENHAR
Amor de mãe que não doa, que seja
exuberante, belo, harmonioso. Mãe sem medo do Sol.
São tantos os versos que meus filhos
criam em mim. Mas versos de mãe e filho estão quase que obrigados a serem versos
tristes. Espera-se emoções dolorosas. Eu quero a sensualidade de ser mãe. A tensão maior que sinto
pelos meus filhos. A relação de pele. O gostoso do contato, a busca de
identificação.
É a cara da mãe... isso é tão pouco.
Não quero um filho para educar, não
quero adestrar cavalos, nem domesticar onças. Não ouso ensinar a alguém sobre
um mundo que não conheço e sobre uma forma de encará-lo que eu não creio; um
mundo que ainda não decifrei. Mostro aos meus filhos a não aceitação das
algemas, apesar de algemada.
A partir de mim, meu filho para pra
pensar na loucura.
Se minha mãe é livre, o que é então
ser livre? O que é ser maconheira? O que é ser poeta? O que é ser tronxa?
Mãe modelo padrão? Para quê? As
viagens estão aí. Se as mães não fossem tão assassinas! Ah! Se as mães não
matassem todos os filhos...
Mães assassinas posam de modelo
socialmente ideal, e continuam fazendo filhos que possuem mães santas.
Paralelamente, mães que não matam, ditas loucas e representando o obsceno
socialmente, continuam fazendo filhos que possuem mães loucas e obscenas.
Filhos de mães santas cruzaram com filhos de mães obscenas e serão filhos
santos obscenos de mães.
Que tudo venha, tudo vá, tudo
cresça, tudo gire e finalmente tudo se reencontre.
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